domingo, 5 de dezembro de 2010

As palavras como coisas e as coisas como palavras; Sobre a face panoptica da Psicologia

Resumo


Este ensaio se propõe a um pensamento dialético-reflexivo sobre o papel da psicologia a favor do poder e do saber na construção da subjetividade em todos os âmbitos da vida humana. Em conformidade com o pensamento de Michel Foucault e sua instigante maneira de formar novas concepções sobre conceitos institucionalizados, sem a pretensão de esgotar o assunto nem abranger todas as miríades a que o argumento nos remete.

Palavras-chave: Psicologia, disciplina, poder, saber, ética.


Abstract


This essay proposes a dialectical thinking and reflective about the role of psychology in favor of power and knowledge in the construction of subjectivity in all spheres of human life. In line with the thinking of Michel Foucault and his provocative way of forming new conceptions of institutionalized concepts; Without intending to be exhaustive or cover all the myriads that argument reminds.

Keywords: Psychology, discipline, power, knowledge, ethics.

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Introdução

O sujeito de Foucault com sua genealogia contingente como o rio de Heráclito, é cônscio da sua indefectível capacidade de transformar-se e mudar o seu mundo, mas, na ilusão de acreditar que a estabilidade é o modelo mais confiável de ser, pensar e agir - posto que destituído de imprevisibilidades – avança nas descobertas enquanto concomitantemente cria o medo do devir (e do devir diferente, em especial). Este tipo de pensamento alienado causa inconformismo e repulsão por qualquer idéia que tire este sujeito da sua zona de conforto e este “ser” recém criado pela modernidade – o homem – tece sua teia como ferramenta apta a capturar o desconhecido, observá-lo, conhecê-lo e dominá-lo. No caso da educação não é diferente! A vontade de disciplinar, nada mais é do que conhecer para controlar o poder que o saber pode vir a exercer nas mãos de quem o detém. E quem há de dizer que a Psicologia não se presta a tal papel? E quem disse que não é a detenção técnica dessa estrutura de poder, que o psicólogo vislumbra, respaldado por conceitos científicos e metodológicos?



Fundamentação

É necessário que lembremos que para ser reconhecida como ciência, a Psicologia lutou para desvencilhar-se de conceitos pré-estabelecidos e criar uma ciência independente destes conceitos e preceitos. Julgou ser livre para ser detentora dos conhecimentos concernentes à subjetividade humana. Porém, o que se observa é que a psicologia se encontra ainda engessada em moldes pré-fabricados disciplinarmente onde num jogo de sombra e luz aliena-se a instrumentos sutis de adestramentos comportamentais como o fora às ciências das quais pretendeu desvencilhar-se, pois bebe em suas fontes para obter mais conhecimentos e deter saberes; Mas, “não há saber neutro”, como diz Foucault em sua obra Vigiar e Punir (1975) e ratificada nas palavras de Roberto Machado, na introdução do livro Microfísica do Poder (1984), também de Michel Foucault. “Todo saber é político”, diz ele, “e tem sua gênese em relações de poder”, reafirma. É neste círculo virtuoso que o poder produz saber que produz individualidades que busca cada vez mais saber para obter mais poder, num incansável e necessário descobrir-se e desbravar-se nesta espécie de ouroboros alquímico. Não foi assim que se desenvolveu a "antropologia jurídica", "psicologia social", "bioarquitetura" dentre várias outras que são amplamente estudadas nos dias de hoje?! Se devemos aplaudir aos pesquisadores que, por coragem e ocasião, desvendaram novos horizontes de conhecimento e cultura, devemos - de igual modo - ver novas abordagens epistemológicas e pensadores controversos como novos desbravadores. Nesta constante e necessária produção de discursos/verdades, é que o poder exerce sua eficácia produtiva. A busca incessante por maiores conhecimentos acaba favorecendo o descobrimento de novas formas de pensar as ciências e em particular, pensar a psicologia científica em meio às diversas vertentes/correntes de pensamento. Mas, não vamos nos iludir de que este processo não se dê mediante “novas” abordagens metodológicas derivadas de regras e procedimentos de produção do conhecimento considerados válidos (enquanto subjugados e submissos ao que é legitimado hegemonicamente), numa sucessiva e já esperada cristalização de axiomas. Como diz Foucault: O saber produz poder e o poder pressupõe resistência.
No primeiro tópico da síntese de L.C.Figueiredo, o autor do livro Psicologia, uma (nova) introdução (2000), faz menção à experiência da subjetividade privatizada como uma precondição para que se formulem objetos da psicologia científica. Ora, esta subjetividade não é tão privatizada assim, antes, é um produto de sujeições públicas a que fomos expostos e dispostos no processo de disciplinarização com instrumentos ortopédicos de “emolduração” de individualidades (numa “disciplina de almas”), ao qual o sistema nos impele sub-repticiamente. Qualquer trejeito idiossincrásico radical não é bem visto pela sociedade e é fatalmente “sugestionado” a um comportamento normativo, visando - muitas vezes inescrupulosamente - a promoção de indivíduos transparentes socialmente, tão inseridos nas normas que não mais se distinguem, apenas obedecem;"É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar." (Foucault, 1984, p. 28). Sujeitos dóceis e moldáveis subjugados a moverem-se na direção que lhes for apontada como certa, sem discernimento nem opinião. Robotizados em seus corpos regulados. A disciplina também é um princípio de controle do discurso e nesta posição de amoldar a palavra às circunstâncias, amoldam-se pensamentos e paulatinamente os convertem em “coisas” politicamente tidas como socialmente aceitáveis. A idéia do sujeito fragmentado está associada às normas que ele precisa se adequar e neste contexto, a psicologia promove esta engenharia comportamental. Não precisa ser completamente normatizado, basta parecer que é para ser aceito no convívio social, pela linguagem, pela vida e pelo trabalho. A vontade de conhecer o outro e ajudá-lo não se tratará de uma máscara institucionalizada de conhecê-lo para dominá-lo? É a psicologia científica se articulando para servir à disciplina. Disciplina aplicada a uma ortopedia dos sentidos.
Todavia, na segunda abordagem, L.C.Figueiredo cita o fato de que não somos assim tão livres e tão diferentes quanto imaginávamos. Mas, nunca o fomos!!! Na pós-modernidade o sujeito se colocou na posição de pensar-se/imaginar-se como livre para tomar suas decisões, entretanto essa é uma liberdade aparente, pois o controle exercido sobre o homem continua a existir. Na torre de marfim em que o sujeito da pós-modernidade se coloca (e aí se insere o psicólogo), ele é levado a crer que é o único responsável pelo seu sucesso pessoal (mesmo que a sociedade capitalista não dê a todos os mesmos direitos e oportunidades) e cai em si quando se dá conta de suas limitações. Quando ele percebe que não é tão livre e que não possui os meios para alcançar o que a sociedade exige, entra em sofrimento/crise. Tal crise pode ser definida como a crise da subjetividade privatizada, onde o que não era tão claramente definido passa a ter outro sentido, dá-se conta do quanto a sociedade influencia no modo de pensar(linguagem), agir(trabalho) e viver(vida), fazendo com que se frustre, mas que também possa identificar quais os agentes e modificar sua relação com estes, pois o poder não é somente negativo, ele também é um poderoso construtor de percepções e decisões, o poder também disciplina esta constante construção de individualidades, as fortalece e faz, em meio a processos de “troca de pele”, nascer e fazer-se um novo homem. Cônscio de sua capacidade de racionalização e superação cartesiana. Porém, qualquer teoria é, por natureza, provisória, posto que diacrônica, e depende de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade; pensamento outrora defendido por David Hume e Max Weber e transcrita em forma de crítica inquieta, por Michel Foucault em cada uma das suas obras.
Numa reedição de uma metafísica Kantiana, onde o saber se constitui nos meandros dos conceitos e da intuição, o psicólogo tem esta característica panoptica, já que observa o outro através de ferramentas de percepção que o observado não dispõe. A ilusão de controlar não é malfazeja, porém, é de bom senso sabê-la/fazê-la útil, não dócil. Como diz Foucault: A disciplina aumenta a força em termos econômicos e diminui a resistência que o corpo pode oferecer ao poder (Foucault, 1997, p:119) . Infelizmente, a isso também se presta a psicologia: a moldar corpos e mentes dóceis, fáceis de serem manipuladas pelo que a sociedade vigente elege como oportuno. Mas, é a isto que a psicologia quer se prestar? A Forjar indivíduos seriados a se tornarem força útil se ao mesmo tempo for produtivo e submisso? Antes, a Psicologia deveria primar por facilitar aos indivíduos a sua autonomia para discernir o que é certo e bom para cada um deles. Respeitados na sua soberania, autonomia e identidade.
Todavia, no seu livro Psicologia: uma (nova) introdução (2004), L,C. Figueiredo faz emergir a suspeita de que a liberdade e a singularidade dos indivíduos são ilusórias, como que se abrisse a caixa de Pandora para uma realidade que a cada instância se desfaz da névoa na qual os seres ditos superiores, estão envoltos desde a época do iluminismo com seu pensamento antropocêntrico e pautado pelo imperativo moral hipotético vigente. Na abertura para novos projetos de previsão e controle científicos do comportamento individual, fica a pergunta: novo em quê? Já que se dá em moldes conhecidos dantes como coercitivos e cristalizados em nosso subconsciente como se fora natural.



Conclusão

Nessa linha de pensamento, o psicólogo trabalha para o controle social do Estado ou pelo controle social do cidadão tendo na clínica uma longa tradição de promotora de emancipação social ou individual. Compete ao psicólogo interrogar-se! Portanto, a psicologia - assim como a educação - deveria, por princípios, preocupar-se mais com a subjetividade humana e seus meandros do que com a objetividade que suas visibilidades sociais lhes proporcionam enquanto ferramentas disciplinadoras e alienantes dos serem a que se pretende libertar pelo conhecimento individual ou social; Imbricando técnica com ética, sem inferências e com conceitos adquiridos no decorrer de sua ontogenia. Se quisermos fazer algo de novo, precisamos olhar o mundo sob novos prismas, começando por nós mesmos esse movimento de emponderamento, como sujeitos de ordem e de emancipação. Estando a psicologia em todas as instituições sociais e diretamente implicada no controle social (enquanto saber e enquanto política), vale emergir a todo instante o seu código de ética - conseguido mediante lutas ideológicas contrapostas de ser/não ser o indivíduo, objeto passível de análise - promover uma psicologia voltada às afecções do espírito onde os papéis sejam respeitados e sua singularidade seja não só preservada, como exaltada. Cabe à psicologia adentrar novos terrenos de desenvolvimento emancipatório sem se deixar dominar por normas invasivas e unilaterais, constituídas pelo Estado. Claro que sem auto-continência, sem autocontrole, não se governa os outros, mas o papel do psicólogo é promover a auto-gestão do seu objeto de estudo, o homem! Estabelecer a instauração de seus “sítios arqueológicos” e olhar o lado, se não positivo, necessário das disciplinas - e uma boa razão para as normas é que elas propiciam o desvio em forças que se opõem e se desenvolvem pela oposição. Tendo a natureza humana como inerentemente mutável - mas não auto-mutável, posto que não dependa totalmente do homem manipulá-la ou moldá-la, mas também das forças normatizadoras da sociedade que o cerca - é campo fértil para novas possibilidades, sempre! Só o que nos afeta é o que importa. Só o que nos afeta é que nos move e as paixões e as normas sociais é o que mais nos afetam; e estas paixões humanas só se realizam socialmente. Resta saber até que ponto nossas raízes aguadas e fincadas em terreno coletivo/punitivo nos dará troncos fortes e galhos fartos para que nos sentemos à sombra de nossa liberdade de escolha, experiências e concepções próprias, pessoais/subjetivas. A quantos ciclos de repetições seremos submetidos antes que nos dêem crédito neste mundo de saber institucionalizado? Esperamos, confiamos que os papéis sejam cumpridos.















Referências Bibliográficas:

FIGUEIREDO, Luis Cláudio e Santi, Pedro Luis Ribeiro. Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo: EDUC, 2004

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

_______ Microfísica do poder. Tradução e Organização de: Roberto Machado.
Rio de janeiro: Editora Graal, 296p.

_______ Vigiar e Punir: Nascimento das prisões. Tradução e Organização de:
Raquel Ramalhete, Petrópolis: Editora Vozes, 26º Edição, 1987, 288p.